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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Mamangaba na janela



Por Karla Caetano


Uma mamangaba raramente ferroa, dizem; a não ser que seja provocada; quando isso ocorre, porém, a sua ferroada é muito dolorosa, dizem. Não sei. Felizmente nunca senti que deveria provocar nenhuma. Dizem também que diferente de outras abelhas, ela não morre ao ferroar, podendo repetir a dose se sentir necessário. Pelo tamanho que é, melhor seria não mexer com uma delas.
Outro dia, pude ver muito bem e de perto, arriscando-me, uma que teimava em tentar voar através do vidro da janela. Acho que abelhas e passarinhos nunca entenderão que força é esta que os segura no lugar, como uma parede que não podem sequer imaginar, quando o horizonte para onde querem alçar voo é tão visível e está logo à frente. Acontece que as flores do maracujá do mato estão se abrindo e seu perfume suave e adocicado é evidentemente algo a que não podem, e nem devem, resistir. O fruto depende dela, talvez mais, do que ela, dele. Ela tem outras flores para cheirar, dançar e saracotear em cima. Adora as raras, esparças e por isso, esnobes, flores da ora-pro-nobis. Mas o maracujá do mato, tem desaparecido dos cerrados. Não há nele interesse de mercado, talvez por ser miúdo comparado ao outro, talvez por ser tão sazonal. Não sei. Não há dedos em luvas de algodão roçando seus pistilos cobertos de pólem e tocando outros, das flores adjacentes, na tentativa desajeitada e indelicada, de imitar as abelhas, só que as pressas, que tempo é dinheiro, sem voo e sem dança, para assim, sem poesia alguma, poloniza-los a tempo de garantir a safra.
Eu soube outro dia, que existe uma Lei, pra salvar o mangangá, como é chamado em tupi. Pela sua importância na polinização de vários tipos de plantas, principalmente o maracujá, não o do mato, de sumo branco-leitoso e aromático. A perseguição do muganga, sim, mais outro nome, ou sua destruição, caça ou apanha é proibida no Brasil. Felizmente. Mais o bichinho não sabe e muita gente também não. Verdade que não se vê por aí contrabando deles, nem campanhas de ódio contra ele, sim porque hoje em dia o ódio é moda. Mas de que adianta se dão fim aos maracujás nas queimadas ou na formação de pastagens, ou nas pulverizações de lavouras, ou na criação de desertos verdes de eucaliptos ou outra espécie viável aos bolsos já fartos, nem que seja das dívidas acumuladas pela vida e com a vida. 
Mas voltando ao vidro, voltando ao mangangá, deixei-o lá lutando com ele. Me acovardei em tentar ajuda-lo a encontrar a saída logo ao lado, por que a janela estava aberta. Tive medo da ferroada. Achei que ele na tentativa louca de alçar seu voo ao infinito e aos perfumes florais, lá de fora, acabaria por encontrar sua saída.
Mais tarde quando voltei, perdida no meio das labutas do dia, já esquecida, ou talvez crendo  que o bichinho aquela hora já se refastelava nos brancos e lilases daquela flor de maracujá, cuja trepadeira se agarrava ao pé das pinhas, ali tão perto da janela. Vi o que me arrependi de ver. Decepção. Vi suas grandes asas negras na boca de um calango de convenção, a majestosa abelha foi o seu lanche aquela tarde.
Concluí que o homem é sempre, ou na maioria das vezes, culpado por suas escolhas, nem que seja pela omissão.

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