Início

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Por ignorância nós fizemos isto...

JUDIADA

Por Karla Caetano


É certo que quando chegamos aqui, ela já estava despida das árvores que outrora a adornaram. O antigo dono, foi quem a despiu daquela forma. Verdade seja dita, suas vizinhas não eram lá muito diferentes. Tudo por causa da fumaça e da fuligem que o carvão e seus fornos levaram ao lugar, numa esperança tola de que se podia construir alguma coisa a partir da destruição de outra.

Me lembro perfeitamente da pontada de decepção por não haver nela, aquela sonhada rainha de todas as árvores, aquela de galhos fartos e fortes, sombra aconchegante e porte altivo que pudesse ser contemplada ainda de muito longe e onde eu faria para meus filhos a casa sonhada da minha infância e que guardaria os segredos deles. Que seria o clube, o forte, o castelo, dependendo da fantasia ou da sugestão daqueles amigos que fariam na nova morada, atraídos a eles por não haver outra construção igual para as suas brincadeiras. 

Antes, o que havia mesmo, eram um ou dois pés de mutambas meio magrelas e talvez umas duas cagaiteiras igualmente franzinas, acho que mais uma... talvez. Algumas aroeiras teimosas surgindo do chão, meio esganiçadas num canto ou outro. Também é certo que já estava tomada por vassouras e outras ervas que nem sabíamos o nome. Um capim tímido saia ali e acolá, em meio a babugem que brotava. A malva, a erva que erroneamente chamávamos de daninha, crescia e cobria tudo de verde. Já que era época das chuvas, porém, quando a seca viesse veríamos e sentiríamos também, nas pernas arranhadas e agarradas por todo aquele mato ressequido pelo sol. Por causa do que incompetentemente classificamos como escassez de espécies, é que trouxemos junto a mudança, várias exóticas, trinta e seis pra ser exata, das quais nós arrogantemente nos orgulharíamos e que a embelezariam e intimamente matariam de inveja a vizinhança com seus aromas. Mangueiras, goiabeiras, jabuticabeiras, pitangueiras, romãzeiras, coqueiros, acerolas, limões e laranjeiras. Sequer tínhamos como dar de beber a todas e muitas pereceram ainda prematuras. Mais à frente, quando a cagaiteira se vestiu de noiva com suas flores pela primeira vez, percebemos nossa tolice de não permitir ao tempo, seu próprio tempo. Só entenderíamos que aquilo era beleza quando anos mais tarde a tivéssemos devastado com aragens, viragens e reviragens, com destocas e socas, secantes e herbicidas, capinas e afins desmedidos. Na busca enlouquecida de uma perfeição inventada. E o que fizemos com ela, hoje sabemos, foi uma judiação. 

Ela sem querer, vingou-se. Foi quando negou-se a nos dar dos frutos vermelhos e azedos da vinagreira novamente. Nós que lhe deixamos nua, com a pele desprotegida ao tempo, ao calor fustigante. Onde silenciosamente o alumínio em suas entranhas se fundiu aos outros minerais, os deixando indisponíveis às diminutas, porém essenciais, formas de vida que teimosamente ainda a enxameavam. Em pouco tempo, deixamos de ver também as esculturas orgânicas feitas pelas minhocuçus na brancura dos curruais. Os besouros africanos escassearam e as aleluias reduziram suas visitas. Os panapanás das borboletas amarelas que bebiam nas poças de água migraram de vez e os pequenos tatus bolas se esconderam tão perfeitamente que já quase não dizíamos mais: um, dois, três... sua vez.

Quanto mais corríamos atrás de curá-la, quanto mais a revolvíamos e quanto mais a vitaminávamos com cal e amônia, com ureia e nitrogênio, e com tudo o mais que renomados doutores e curandeiros geoespecialistas nos dissessem, tanto mais bravia e feroz ela ficava. O que tenazmente julgamos ser pirraça, não fora mais que o resultado da dor que cegamente infligíamos a ela. Perdia o viço e a vontade. Negava-se hidratar da água oferecida, quer por nós ou pelas cada vez mais raras nuvens, fossem elas cirros ou nimbos, e jogava-a fora em enxurradas que a lixiviavam e desnutriam causando-lhe feridas. Crostas duras e disformes como queloides, tal como cicatrizes impermeáveis, eram a prova do quanto estava, de fato, judiada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário